Alguns dias antes do feriado de 7 de setembro de 1982, um jovem entrou
no consultório da dermatologista Valeria Petri, em São Paulo. "Ele
apresentava uma lesão única no pé, muito diferente do que costumávamos
observar", conta a médica, da Universidade Federal de São Paulo. A tal
lesão era o sarcoma de Káposi, tumor maligno que representava um cartão
de visita da aids, até então desconhecida no Brasil. "Como não sabíamos o
que era a doença, seguíamos a pouca literatura médica estrangeira e
aprendemos como tratá-la na prática", recorda o infectologista Caio
Rosenthal, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
Junto com Valeria, Rosenthal integrou a equipe que fez o diagnóstico dos
primeiros casos de infecção pelo vírus HIV no país.
"Àquela
época, o sujeito morria rápido porque chegava ao hospital com muitas
doenças oportunistas que se aproveitavam da presença do vírus incubado",
relata o médico. Houve pânico. Mas o surgimento de remédios ao longo
dessas três décadas faz com que, hoje, o soropositivo não lembre nem de
longe a imagem do sujeito magro e debilitado a que era associado. Após
uma verdadeira revolução medicamentosa, o prognóstico é dos mais
favoráveis e a aids é considerada quase uma doença crônica. "Se tratada
precocemente, a pessoa infectada vive tanto quanto quem não carrega o
HIV no sangue", garante Rosenthal.
As boas-novas não se
restringem ao portador desse vilão. Ora, o soropositivo passou a viver
bem mais do que alguns poucos meses justamente porque se investigou seu
sistema imune para descobrir como o vírus agia. E, assim, os cientistas
confirmaram: nossos hábitos influenciam, e muito, as defesas do corpo.
Não é um achado irrelevante. Podemos dizer que a aids, de certa maneira,
transformou o que soava a sabedoria popular em conhecimento científico.
Para o portador do HIV, o famoso estilo de vida saudável conta
muitos pontos. Os fármacos disponíveis para quem convive com a doença
exigem atenção redobrada para prevenir problemas que, antes, ninguém
relacionaria à aids, como um infarto ou o diabete. É preciso disciplina.
Portanto, apesar da perspectiva otimista, ainda não é tempo de
celebrar. "As pessoas estão encarando a aids como um mal tratável e se
esquecem de que não há cura", alerta o médico especialista no assunto
Valdez Madruga, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, a SPI.
"Quando
os primeiros diagnósticos surgiram, eu já afirmava que não era o vírus
que matava, mas, sim, a vulnerabilidade psicológica a que o paciente
ficava submetido", conta o psicólogo Esdras Vasconcelos, pioneiro no
acompanhamento multidisciplinar do soropositivo no Brasil. O grupo de
estudos liderado por ele na Universidade de São Paulo saiu à frente ao
comprovar que os hormônios que vão às alturas quando passamos por fortes
emoções afetam o modo como o corpo reage ao HIV. "E isso é válido,
agora se sabe, para uma simples gripe à doença autoimune", completa
Vasconcelos. "Um beijo de mãe vale mais que uma pílula", reitera Lucinha
Araújo, fundadora da Sociedade Viva Cazuza, que apoia indivíduos
soropositivos, e mãe do cantor e compositor que empresta o nome à
instituição.
A importância do afeto e de gerenciar o estresse
continua pesando, mesmo com os coquetéis de remédios que esticam a
expectativa de vida. Assim como a ciência continua observando de perto
as respostas do organismo diante do invasor. "Se antes o paciente
definhava, agora ele apresenta um problema na distribuição de gordura.
Ela diminui nos braços e no rosto e aumenta no abdome - e, ali, eleva
mais o risco cardíaco", explica o pesquisador Luis Fernando Deresz, da
Universidade Federal de Ciência da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul. Os responsáveis por esse efeito colateral são os inibidores de
protease, drogas anti-HIV disponíveis desde o fim da década de 1990.
Por
combater esse revés, o exercício passou a ser um forte aliado no
tratamento. Aliás, foi estudando o laço entre movimentação e
soropositividade que uma equipe de cientistas gaúchos destrinchou um
mecanismo com potencial para colocar a atividade física de vez na lista
de armas contra uma série de doenças, com direito a dose certa e tudo. A
intensidade da malhação, descobriu o time, pode modular a ação de uma
molécula, a HSP70. Ela, por sua vez, consegue frear a multiplicação do
vírus ao impedir que ele se ligue às células imunes. "Aparentemente, a
HSP70 controla a atividade inflamatória. Na aids, não há tanta
inflamação. Já no diabete, ela é exacerbada", compara o líder do
trabalho, Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Prescrever exercícios visando ajustar a dose
dessa molécula para mais ou para menos, então, seria a chave para que as
benesses do esporte sejam aproveitadas ao máximo por todos.
O
curioso é que, há alguns anos, o exercício dificilmente seria associado
ao controle da aids. E ele é apenas um dos hábitos que, com o salto da
sobrevida, passaram a integrar a estratégia de combate ao HIV ao lado do
coquetel antirretroviral. A alimentação é outra peça - e tem suas
particularidades. Tanto que o Ministério da Saúde lançou em 2006 uma
cartilha com instruções para a nutrição de quem vive com o HIV. "Isso só
reforça que é necessário a união de especialistas de diferentes áreas
para aumentar ainda mais a sobrevivência desses indivíduos", opina o
infectologista e soropositivo americano Anthony Mills, da Universidade
da Califórnia em Los Angeles.
O conceito de sexo seguro também
se ampliou. O uso de camisinha é agora considerado primordial mesmo na
relação entre dois soropositivos. "Ou um portador corre o risco de pegar
do outro um tipo diferente de HIV. E isso tornará o tratamento mais
difícil", orienta Valdez Madruga, da SPI. Ou seja, camisinha sempre. Até
pelo óbvio: sem preservativo, o soropositivo pode contaminar quem não
carrega o vírus. Aliás, para Lucinha Araújo, "o lado negativo dessa
evolução na qualidade de vida é que a aids saiu de moda e ninguém fala
mais de contágio".
O sociólogo Alexandre Grangeiro, do
Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo,
concorda: "Quando o HIV deixou as rodas de discussões e os jornais,
abriu-se caminho para que velhos preconceitos voltassem e métodos de
proteção caíssem em desuso, dificultando o trabalho de prevenção". De
fato, a doença está longe de ser considerada passado. "A aids no Brasil
está estabilizada, porém em patamares muito altos", constata Eduardo
Barbosa, diretor adjunto do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais
do Ministério da Saúde.
Segundo o último boletim do ministério,
33 mil novos casos foram diagnosticados no ano passado, 14 mil óbitos
em decorrência da síndrome, e devem existir 250 mil brasileiros vivendo
com aids sem saber. "Precisamos focar ainda mais os jovens", opina
Barbosa. "Eles já sabem tudo sobre preservativos, mas não mudam de
comportamento. Além disso, é primordial convencer todo mundo a fazer o
teste." A importância do exame será o mote da próxima campanha do
governo federal. Independentemente da orientação sexual de cada um e do
número de parceiros durante a vida, saber se o HIV corre no sangue
parece ser o caminho certo para que a aids possa ser controlada
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