Vinte
milhões de brasileiros sofrem com aquela queimação no tórax que delata o
problema, embora muitos não desconfiem do motivo nem o levem tão a
sério. Mas saiba que consertá-lo é o caminho para apagar a azia e evitar
que o incêndio culmine em doenças como o câncer.
A
sensação, bastante corriqueira, é a de que a refeição não caiu muito
bem e ainda por cima quer voltar. Acompanhada desse tráfego às avessas,
vem a queixa de que acionaram um lança-chamas dentro do tórax. O
desconforto frequente, às vezes escoltado por uma dor no peito, sinaliza
que uma confusão foi armada no esôfago, o tubo muscular encarregado de
transportar os alimentos até o estômago. E a causa do suplício tem nome e
sobrenome: refluxo gastroesofágico. "É o problema digestivo mais comum
nos países ocidentais", afirma o gastroenterologista Ary Nasi, assessor
médico do Laboratório Fleury, em São Paulo.
A
doença, negligenciada por muita gente, parece estar em franca ascensão.
Isso porque anda de braços dados com maus hábitos que, infelizmente,
permanecem em voga: a dieta gordurosa, o sedentarismo e o resultado
dessa combinação, a obesidade. Antes que um hipocondríaco se atreva a se
autodiagnosticar, vale esclarecer que, se o fogaréu capaz de escalar
abdômen acima ocorre somente de vez em quando, sobretudo depois daquela
feijoada, trata-se de algo natural. "Todos nós temos esse refluxo
ocasional", tranquiliza o gastroenterologista Cláudio Bresciani, do
Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
O
problema nasce quando essa tortura é recorrente e não depende só dos
exageros à mesa. "Se acontecer mais de uma vez por semana, há uma
suspeita da doença", esclarece Nasi, que também atua no Hospital das
Clínicas de São Paulo. Tudo acontece porque o esfíncter, uma válvula que
fica na divisa entre o esôfago e o estômago, relaxa demais em momentos
inoportunos. "Sua função é impedir a volta da comida", diz Bresciani. Ao
perder a pressão, porém, ele deixa de funcionar direito e permite que o
conteúdo gástrico retorne, contrariando a lei da gravidade.
O
azar é do esôfago. "Ele não está acostumado a conviver com a acidez que
vem do estômago", observa o gastroenterologista José Galvão Alves, da
Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. O suco gástrico, essencial
para a quebra dos alimentos, agride o tubo - e o pior é que ele pode
subir com pedaços de comida. Com o tempo, o esôfago fica refém de uma
inflamação permanente, o que cria um ambiente perfeito para tumores. "A
irritação pode levar a alterações no órgão típicas de um quadro chamado
esôfago de Barrett, o que aumenta o risco de um dos tipos mais comuns de
câncer ali", alerta o cirurgião oncológico Felipe Coimbra, diretor do
Departamento de Cirurgia Abdominal do Hospital A.C. Camargo, em São
Paulo.
Mas
por que cargas d’água o refluxo se torna uma pedra no esôfago de tanta
gente? "Uma das principais razões é o esfíncter incompetente", aponta
José Galvão Alves. O termo é aplicado quando a válvula afrouxa
espontaneamente, deixando a acidez cair na contramão. "O álcool e o
cigarro também favorecem seu relaxamento", lembra Ary Nasi. Essa
porteira abre sem necessidade por outro motivo: a hérnia de hiato. "Ela
acontece quando um pedaço do estômago escapa da musculatura do diafragma
e fica fora do lugar", descreve Nasi. Nesse cenário, mais habitual
entre os obesos, o conteúdo gástrico reflui facilmente e o esfíncter não
consegue freá-lo.
Flagrar
o refluxo não é importante apenas para abrandar o incêndio. "Além da
inflamação no esôfago, a doença pode influenciar crises de asma,
corromper o esmalte dentário e causar tosse crônica e rouquidão",
enumera Galvão. A via-crúcis do diagnóstico começa, é claro, com a
história do paciente. O primeiro exame requisitado é a endoscopia, que
avalia se há uma irritação no esôfago. "Mas um resultado normal não
afasta o refluxo", diz Nasi. Para esclarecer a dúvida, os médicos
recorrem à pHmetria. "Trata-se de um equipamento instalado no tubo que,
ao longo de 24 horas, mede a acidez bem ali", explica Cláudio Bresciani.
Mais um método ainda pode ser convocado, a impedanciometria, que apura a
quantidade e a intensidade dos refluxos.
Detectado
o problema, aí, sim, os especialistas traçam a estratégia terapêutica.
"Nove em cada dez pacientes se beneficiam do tratamento clínico", conta
Bresciani. Ele é composto de drogas via oral conhecidas como inibidores
da bomba de próton, cujo objetivo é diminuir a concentração do ácido no
estômago. Sozinhos, no entanto, não fazem milagre - são essenciais
alguns arranjos na rotina (veja quadro abaixo). Um novo estudo da
Universidade de Copenhague, na Dinamarca, mostra que, seguidas à risca,
mudanças de hábito associadas ao medicamento aumentam as chances de
sucesso: aí, dois terços dos pacientes se livram da queimação.
Há
casos, porém, que exigem cirurgia para fazer uma reforma entre o
esôfago e o estômago, recobrando a pressão da válvula e, se preciso,
corrigindo uma hérnia de hiato. Tudo isso é feito por laparoscopia, ou
seja, demanda pequenos cortes para ser executada. No campo da pesquisa,
há quem fale em procedimentos por endoscopia, em que não existiram nem
sequer furos. "Mas até o momento os resultados não são tão bons",
comenta Bresciani. Na seara dos remédios, não cessa a busca por fórmulas
mais eficazes. "Existem estudos com drogas que agem diretamente no
esfíncter", conta Nasi. Mas, se somarmos um estilo de vida saudável aos
recursos já disponíveis, não é nenhuma missão impossível botar ordem
nesse trânsito caótico e abrasador.
Fonte: saude.abril.com.br
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