segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013


Alguns dias antes do feriado de 7 de setembro de 1982, um jovem entrou no consultório da dermatologista Valeria Petri, em São Paulo. "Ele apresentava uma lesão única no pé, muito diferente do que costumávamos observar", conta a médica, da Universidade Federal de São Paulo. A tal lesão era o sarcoma de Káposi, tumor maligno que representava um cartão de visita da aids, até então desconhecida no Brasil. "Como não sabíamos o que era a doença, seguíamos a pouca literatura médica estrangeira e aprendemos como tratá-la na prática", recorda o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Junto com Valeria, Rosenthal integrou a equipe que fez o diagnóstico dos primeiros casos de infecção pelo vírus HIV no país. 

"Àquela época, o sujeito morria rápido porque chegava ao hospital com muitas doenças oportunistas que se aproveitavam da presença do vírus incubado", relata o médico. Houve pânico. Mas o surgimento de remédios ao longo dessas três décadas faz com que, hoje, o soropositivo não lembre nem de longe a imagem do sujeito magro e debilitado a que era associado. Após uma verdadeira revolução medicamentosa, o prognóstico é dos mais favoráveis e a aids é considerada quase uma doença crônica. "Se tratada precocemente, a pessoa infectada vive tanto quanto quem não carrega o HIV no sangue", garante Rosenthal. 

As boas-novas não se restringem ao portador desse vilão. Ora, o soropositivo passou a viver bem mais do que alguns poucos meses justamente porque se investigou seu sistema imune para descobrir como o vírus agia. E, assim, os cientistas confirmaram: nossos hábitos influenciam, e muito, as defesas do corpo. Não é um achado irrelevante. Podemos dizer que a aids, de certa maneira, transformou o que soava a sabedoria popular em conhecimento científico. 

Para o portador do HIV, o famoso estilo de vida saudável conta muitos pontos. Os fármacos disponíveis para quem convive com a doença exigem atenção redobrada para prevenir problemas que, antes, ninguém relacionaria à aids, como um infarto ou o diabete. É preciso disciplina. Portanto, apesar da perspectiva otimista, ainda não é tempo de celebrar. "As pessoas estão encarando a aids como um mal tratável e se esquecem de que não há cura", alerta o médico especialista no assunto Valdez Madruga, diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, a SPI. 

"Quando os primeiros diagnósticos surgiram, eu já afirmava que não era o vírus que matava, mas, sim, a vulnerabilidade psicológica a que o paciente ficava submetido", conta o psicólogo Esdras Vasconcelos, pioneiro no acompanhamento multidisciplinar do soropositivo no Brasil. O grupo de estudos liderado por ele na Universidade de São Paulo saiu à frente ao comprovar que os hormônios que vão às alturas quando passamos por fortes emoções afetam o modo como o corpo reage ao HIV. "E isso é válido, agora se sabe, para uma simples gripe à doença autoimune", completa Vasconcelos. "Um beijo de mãe vale mais que uma pílula", reitera Lucinha Araújo, fundadora da Sociedade Viva Cazuza, que apoia indivíduos soropositivos, e mãe do cantor e compositor que empresta o nome à instituição. 

A importância do afeto e de gerenciar o estresse continua pesando, mesmo com os coquetéis de remédios que esticam a expectativa de vida. Assim como a ciência continua observando de perto as respostas do organismo diante do invasor. "Se antes o paciente definhava, agora ele apresenta um problema na distribuição de gordura. Ela diminui nos braços e no rosto e aumenta no abdome - e, ali, eleva mais o risco cardíaco", explica o pesquisador Luis Fernando Deresz, da Universidade Federal de Ciência da Saúde de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Os responsáveis por esse efeito colateral são os inibidores de protease, drogas anti-HIV disponíveis desde o fim da década de 1990. 

Por combater esse revés, o exercício passou a ser um forte aliado no tratamento. Aliás, foi estudando o laço entre movimentação e soropositividade que uma equipe de cientistas gaúchos destrinchou um mecanismo com potencial para colocar a atividade física de vez na lista de armas contra uma série de doenças, com direito a dose certa e tudo. A intensidade da malhação, descobriu o time, pode modular a ação de uma molécula, a HSP70. Ela, por sua vez, consegue frear a multiplicação do vírus ao impedir que ele se ligue às células imunes. "Aparentemente, a HSP70 controla a atividade inflamatória. Na aids, não há tanta inflamação. Já no diabete, ela é exacerbada", compara o líder do trabalho, Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Prescrever exercícios visando ajustar a dose dessa molécula para mais ou para menos, então, seria a chave para que as benesses do esporte sejam aproveitadas ao máximo por todos. 

O curioso é que, há alguns anos, o exercício dificilmente seria associado ao controle da aids. E ele é apenas um dos hábitos que, com o salto da sobrevida, passaram a integrar a estratégia de combate ao HIV ao lado do coquetel antirretroviral. A alimentação é outra peça - e tem suas particularidades. Tanto que o Ministério da Saúde lançou em 2006 uma cartilha com instruções para a nutrição de quem vive com o HIV. "Isso só reforça que é necessário a união de especialistas de diferentes áreas para aumentar ainda mais a sobrevivência desses indivíduos", opina o infectologista e soropositivo americano Anthony Mills, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. 

O conceito de sexo seguro também se ampliou. O uso de camisinha é agora considerado primordial mesmo na relação entre dois soropositivos. "Ou um portador corre o risco de pegar do outro um tipo diferente de HIV. E isso tornará o tratamento mais difícil", orienta Valdez Madruga, da SPI. Ou seja, camisinha sempre. Até pelo óbvio: sem preservativo, o soropositivo pode contaminar quem não carrega o vírus. Aliás, para Lucinha Araújo, "o lado negativo dessa evolução na qualidade de vida é que a aids saiu de moda e ninguém fala mais de contágio". 

O sociólogo Alexandre Grangeiro, do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, concorda: "Quando o HIV deixou as rodas de discussões e os jornais, abriu-se caminho para que velhos preconceitos voltassem e métodos de proteção caíssem em desuso, dificultando o trabalho de prevenção". De fato, a doença está longe de ser considerada passado. "A aids no Brasil está estabilizada, porém em patamares muito altos", constata Eduardo Barbosa, diretor adjunto do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. 

Segundo o último boletim do ministério, 33 mil novos casos foram diagnosticados no ano passado, 14 mil óbitos em decorrência da síndrome, e devem existir 250 mil brasileiros vivendo com aids sem saber. "Precisamos focar ainda mais os jovens", opina Barbosa. "Eles já sabem tudo sobre preservativos, mas não mudam de comportamento. Além disso, é primordial convencer todo mundo a fazer o teste." A importância do exame será o mote da próxima campanha do governo federal. Independentemente da orientação sexual de cada um e do número de parceiros durante a vida, saber se o HIV corre no sangue parece ser o caminho certo para que a aids possa ser controlada

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